“Meu neném dormiu agora, vou conseguir te responder”. Foi assim, às 21h, que Bruna Borges, assistente de finanças na OPAS (Organização Panamericana da Saúde) e aluna do Mestrado em Administração Pública do IDP começou a nossa conversa. Antes disso, ela já havia avisado: o marido estava trabalhando, ela tem um filho de 2 anos e estava na correria.
Estamos, sempre.
Segundo o IBGE, as mulheres dedicam 10,4 horas semanais a mais que os homens aos afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas. As informações são da última PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) e mostram que os homens dedicam 11h semanais a essas atividades, enquanto, entre as mulheres, esse número sobe para 21,4 horas semanais - quase o dobro.
Em tempos de pandemia, “o que já era precário ficou muito pior”, ressalta Renata Malheiros, coordenadora do Sebrae Delas, projeto do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) que apoia empresas lideradas por mulheres. Com as crianças em casa pelo fechamento das escolas e, os idosos, por serem grupos de risco, precisarem de mais cuidados, as mulheres estão ainda mais sobrecarregadas, já que, “culturalmente, essas tarefas sempre recaíram mais sobre elas”, explica ela.
O resultado? Mulheres dedicam 17% menos horas às empresas que os homens, segundo pesquisa do Sebrae. “E o dia tem 24 horas para todo mundo. O que a gente faz com essas 24 horas é que faz a diferença na nossa vida. Mas, como eu vou me dedicar aos meus negócios se eu, culturalmente, estou sobrecarregada com as tarefas domésticas e com o cuidado com pessoas?”, questiona Renata.
A cultura está acima de todos nós
“É claro que as mulheres estão em toda parte. Mas eu quero ver mulher em cargo liderança, eu quero ver mulher mandando, quero ver mulher em cargo de poder. Mulher trabalhando sempre teve, agora, mulher mandando, será que tem? Por que não tem? Quais são as barreiras invisíveis?”. É com esse questionamento que Renata Malheiros traz as dificuldades de uma cultura que há tempos, coloca a mulher em desvantagem em diversos aspectos sociais.
Desde crianças, somos, todos, homens e mulheres, educados de acordo com o que a sociedade espera de meninos e meninas - expectativas essas, também, resultado da cultura. “É o ‘homem não chora’, é o ‘isso não é jeito de menina falar’, é dizer que meninas não são boas em matemática, por exemplo”, detalha.
A experiência de entrar numa loja de brinquedos, por exemplo, ilustra como a socialização de meninos e meninas é diferente. Se, quando você procura um brinquedo para meninas, as opções oferecidas são casinhas, panelinhas, vassourinhas e bonecas, “você ensina a cuidar, a cozinhar, a dar amor. E isso é excelente! O problema é ensinar isso só para menina. Eu preciso de um homem adulto que também faça isso”, explica.
Da mesma forma, acontece com os brinquedos dos meninos. Ao oferecer carrinhos, jogos de tabuleiro, blocos de montar, super heróis, ensinamos “senso de abstração, velocidade, proatividade, raciocínio lógico, a agir com coragem. Excelente também! O problema é ensinar isso só para menino. Eu preciso que as mulheres tenham essas competências também”, esclarece Renata.
É a partir daí que surgem as chamadas crenças limitantes ou vieses inconscientes, que reverberam no comportamento de homens e mulheres quando adultos. “Esse é o X da questão: meninos e meninas recebem, da nossa própria criação, da nossa própria cultura, essas crenças. Tudo o que a gente aprende na infância fica muito enraizado”, pontua Renata.
Essas crenças limitantes ao mesmo tempo que são problema, trazem consigo a resposta: por se tratar uma questão culturalmente construída é passível de mudança. “A maior parte do nosso comportamento, quem nós somos, o que fazemos e como fazemos, foi ensinado. E, se foi ensinado, a gente pode mudar.”, enfatiza Renata.
Renata Malheiros traz toda sua experiência com empreendedorismo feminino e promoção de diversidade em cargos de liderança para o minicurso Mulheres e Liderança. As aulas fazem parte do projeto OpenClass do IDP, que oferece cursos rápidos online, gratuitos e com certificação.
Diversidade e liderança feminina
Um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (Organização das Nações Unidas), a igualdade de gênero é essencial para o bom funcionamento da sociedade como um todo, o que inclui empresas e a gestão pública.
“O espaço público foi historicamente destinado aos homens, e isso inclui, notadamente, as arenas de decisão; quando mulheres tentam acessá-lo, podem ser refutadas porque o estereótipo que cerca os cargos de liderança são os masculinos”, explica Carolina Costa, professora do Curso de Direito do IDP e advogada.
“Quando você pensa na representação política, ainda existe um caminho longo para as mulheres andarem para ocuparem esse espaço de poder”, opina Renata Malheiros. Segundo o IBGE, apesar de 52% da população brasileira ser formada por mulheres, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, apenas 14% das cadeiras são ocupadas por mulheres.
Para Carolina Costa, representatividade feminina é sinônimo de inovação e de respeito: “quanto maior a representatividade feminina, mais diversos serão os produtos, criações, decisões e planos de uma instituição, quer seja pública ou privada”.
Em países, empresas, governos ou grupos que são mais diversos, ou seja, que tem senhores, jovens, homens, mulheres, negros, brancos, LGBTQI+, heterossexuais, pessoas com deficiência, as possibilidades de se obter resultados mais efetivos são maiores. “Grupos diversos tem mais chances de conseguir um produto, um serviço ou uma solução que realmente resolvam os problemas do mundo lá fora. porque o mundo lá fora é, por definição, diverso”, pontua Renata..
A coordenadora do Sebrae Delas reconhece que equipes heterogêneas podem ser mais difíceis de trabalhar, por existir mais conflito em potencial quando comparadas a grupos homogêneos, de pessoas com ideias semelhantes. Porém, “grupos que tenham mais diversidade são potencialmente mais criativos, e a criatividade é a matéria-prima para a inovação. Assim como a inovação é matéria-prima para a competitividade”, afirma Renata.
No mesmo sentido, a professora Carolina pontua: “ quanto mais se tem mulheres em espaços de poder, maior é a complexidade das decisões”. Um exemplo disso é a atuação de lideranças femininas no combate à COVID-19.
Países como Nova Zelândia, Alemanha, Islândia, Noruega, Finlândia e Taiwan, todos liderados por mulheres, mostram melhores resultados no gerenciamento de ações para conter a pandemia em relação aos governados por homens.
O caso da Nova Zelândia é bastante emblemático tanto pela atuação para eliminar o novo coronavírus do território - no país, a pandemia foi controlada com apenas 21 mortes, índice de 0,5 por 100 mil habitantes. “Isso demonstra que cuidado e empatia não são características importantes apenas no espaço privado, mas, principalmente, nos espaços públicos”, reitera Carolina Costa.
Além disso, a primeira-ministra Jacinda Ardern foi, também, a primeira líder a participar de uma Assembléia Geral da ONU com um bebê no colo - na época, a filha da premiê tinha 3 meses.
Rotina intensa
“Meu dia começa às 5h da manhã. Às 6h, eu tomo café com o neném, depois eu já saio para remar, volto, trabalho, estudo línguas e faço mestrado”, relata Bruna. Conseguir conciliar tantas atividades se torna mais fácil pelo apoio que recebe do marido e da babá.
“Ele é pai e eu sou mãe. Como a gente não tem rede de apoio familiar, um depende do outro aqui para conseguir realizar seus projetos. Todas as tarefas a gente divide meio a meio. Isso foi importante para eu conseguir fazer o mestrado, por exemplo”, relata.
Apesar de poder contar com a assistência em casa, Bruna acredita que mulheres mães têm maior dificuldade em se desligar, por ter uma preocupação mais constante com o filho: “o instinto materno é muito forte. Você sente necessidade de cuidar, de proteger. Tem aquela preocupação extrema, se ganha peso ou não, se dorme ou não”, comenta. Por isso, “é muito mais fácil um homem se desligar da paternidade e focar num projeto do que a mulher se desligar da maternidade para focar num projeto semelhante”, opina.
O que, de forma alguma, quer dizer que mulheres com filhos não possam progredir profissionalmente. Bruna acredita na força da mulher. “O planejamento feminino, a flexibilidade, a inovação, encontrar tempo para cuidar do próximo, para resolver algo da casa... a mulher pensa em tudo, faz mil coisas ao mesmo tempo. A capacidade que a mulher tem de desenvolver tantas atividades durante o dia é impressionante!”, finaliza.
É importante ter exemplo
“A conciliação de atividades tão distintas nos ajuda a gerir melhor o tempo e a ter foco e disciplina para priorizar os projetos mais relevantes”, afirma Magda Carvalho, atualmente diretora de Marketing e Relacionamento Institucional da Caixa Econômica Federal.
Há 17 anos funcionária de carreira no banco, Magda já ocupou todos os cargos da carreira gerencial no âmbito da matriz da Caixa. Também já passou pela Presidência da República, onde foi diretora dos departamentos de Relação com a Imprensa Regional e Internacional. Ela também tem dois filhos e dois enteados.
Para Magda, ser mulher no ambiente corporativo exige a quebra de paradigmas, como a conciliação da carreira e da maternidade, “vista, em muitos casos, como um impeditivo ou dificultador para a assunção de cargos de liderança”, avalia.
Apesar disso, ela acredita que o mundo das grandes corporações apresenta grande evolução nas oportunidades às mulheres, no sentido de disputar de maneira mais igualitária os cargos de chefia. A Caixa Econômica, por exemplo, conta atualmente com 14 mulheres na alta gestão, ocupando cargos como vice-presidências e diretorias. “Há bem pouco tempo esse número era zero”, enfatiza.
Mesmo com os avanços, “é inegável que, sim, toda executiva em algum momento teve que reafirmar capacidades e demonstrar resultados em um nível maior que teria se fosse homem no mesmo nível de carreira”.
Ainda assim, a executiva reforça a importância de mulheres se verem representadas na alta gestão da empresa. Para ela, ter exemplo é essencial para que outras mulheres sejam motivadas a investir na carreira, estudando temas como liderança e gestão, com o objetivo de ascender profissionalmente, “alimentando-se, assim, um ciclo virtuoso”, enfatiza.
Carolina Costa chama atenção, também, para a representatividade feminina plural: “é importante ressaltar a importância dessa representatividade no plural: mulheres, e mulheres diversas, brancas, negras, com diferentes formações e visões de mundo, com diferentes experiências de vida”, afirma. Segundo a docente, quanto mais se tem mulheres em espaços de poder, maior é a complexidade das decisões.
O valor do exemplo nos cargos de liderança está relacionado à capacidade de sonhar. Segundo Renata Malheiros, é preciso enxergar que é possível, “se meninas não veem mulheres astronautas, elas não sonham com isso. Se meninos não veem bailarinos homens, eles também não sonham em serem bailarinos. Essa é a importância do exemplo”, finaliza.
Por isso, seguimos sonhando.
Com um mundo mais igualitário, de mais oportunidades.
Com mais representatividade, mais contribuição, mais criatividade e inovação.
Com mais exemplos, até que esses não sejam mais a exceção.
E continuaremos sonhando. Sempre.